Favorito ao Oscar, filme de Steven Spielberg cria enredo histórico sobre corrupção, democracia e liberdade
Não
se trata de uma cinebiografia ou apenas de um registro histórico comum,
daqueles que o cinema produz de vez em quando. "Lincoln" foi bem além
das expectativas ao oferecer um comovente e reflexivo painel não apenas
de um sistema político, no caso, a democracia norte-americana, mas
igualmente de questões sobre o homem e seu destino, o progresso humano
no andamento das civilizações e o registro da história.
O inglês Daniel Day-Lewis interpreta Abraham Lincoln em seu empenho pela abolição dos escravos
O
filme foi baseado em "Team of Rivals: the Political Genius of Abraham
Lincoln", livro da historiadora Doris Kearns Goodwin, editado no Brasil
em uma versão compacta intitulada "Lincoln", é considerado a melhor e
mais completa biografia do presidente dos Estados Unidos.
Para
uma cinematografia conhecida por desrespeitar a veracidade dos fatos,
seja mitológica, biográfica ou histórica, é deveras salutar se assistir a
"Lincoln", um filme que respeita com fidelidade canina um personagem em
seu momento histórico sem contradições com a intelectualidade.
Independente
disso, "Lincoln", o filme, surpreende também por expor esse personagem
não como um monumento, mas como um homem comum que buscava nas
metáforas, citações religiosas e fatos reais o sentido do momento, das
coisas e do mundo. É especialmente notável a cena em que o presidente
conversa com dois jovens telegrafistas e cita, procurando um sentido
para os seus próprios atos, na sentença "as coisas que são iguais à
mesma coisa também são iguais entre si", o pensamento expressado pelo
filósofo Euclides, o pai da geometria, para a igualdade de tudo.
Reside
neste sentido da igualdade das coisas do mundo o sentido de justiça
buscado por Lincoln, o presidente. E se igualdade é uma coisa da
justiça, está perante a lei. E se está na lei, não pode ser confrontada.
Nesse
entendimento do mundo, Lincoln envereda pela ausência de sentido em uma
guerra fratricida que culminaria na morte de 650 mil pessoas. Para
acabar com a ela, e conceder constitucionalmente a sonhada liberdade aos
negros escravizados, a 13ª Emenda era a solução. O filme conta a
história dessa outra guerra travada nos bastidores entre o presidente e
os políticos de seu tempo.
É nesse desenrolar que "Lincoln"
escancara a democracia. No enfrentamento da parte da nação
preconceituosa e exploradora da escravidão - os estados do norte, com a
econômica básica na agricultura e mão de obra escrava - representada em
uma Câmara citada como "um ninho de ratos" pelo Secretário de Estado
William Seward (David Strathairn), que "Lincoln" expõe como ervas
daninhas a ideologia partidária, racismo e interesses econômicos.
Fragilidade
Questões
que o roteirista Tony Kushner (da série de TV "Angels in America"),
parceiro de Steven Spielberg em "Munique" (2005), desenvolve com notável
desenvoltura. Louve-se, na obra do diretor, o fato de expor um Abraham
Lincoln como um homem capaz de aceitar a fraqueza dos políticos por
cargos e corrompê-los em número suficiente para alcançar "os seus fins".
Notável
a frase do republicano Thaddeus Stevens (Tommy Lee Jones) ao entregar o
documento histórico a sua empregada e amante e pronunciar a história
frase "a maior medida do século XIX, aprovada pela corrupção, ajudada e
instigada pelo homem mais puro da América". Com outros viés (a grana
bruta) essa história repetiu-se por aqui um século e meio depois. Os
historiadores têm razão: a história se repete, apenas se repete, dizem
alguns historiadores, mas com outros aspectos.
Destino
Um
outro aspecto explorado sutilmente em "Lincoln", alia destino, causa e
tempo. Ainda na cena de Lincoln com os dois telegrafistas, ele pergunta:
"Você acha que escolhemos para nascer?", pergunta Lincoln, "estamos
preparados para o tempo em que nascemos?". O engenheiro diz há máquinas,
mas ninguém fez a instalação. É preciso, claro que haja alguém para
isso.
Na questão, dissipa-se o inexistente acaso e entra em cena
determinismo e destino. Abraham Lincoln, 16º presidente dos EUA, surgiu
em um tempo de mudanças exigida e inspirada pela Revolução Francesa nos
ideais de igualdade e liberdade. Os EUA vinham com movimentos de
secessão e a da guerra civil (1861-65), promovida por 11 estados do sul
que formaram os Estados Confederados da América, foi o último deles,
finalizada nos campos de batalha e no Congresso com a aprovação da 13ª
Emenda.
É o homem que formaliza a História, aprimora a sua
sociedade através dos tempos e edifica uma civilização. Abraham Lincoln,
buscando na igualdade nas coisas, expressa essa formalização. Um filme
para se refletir sobre o homem, a democracia e a história.
Leia mais em http://blogs.diariodonordeste.com.br/blogdecinema
Mais informações
Lincoln
(Lincoln, EUA, 2012), de Steven Spielberg, com Daniel Lee-Lewis, Sally
Field e Tommy Lee Jones. Salas e horários no Caderno Zoeira
PEDRO MARTINS FREIRECRÍTICO DE CINEMA
Fonte: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1227278
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