Vincenzo Pinto/AFP
“A humanidade está vivendo um processo de liquefação”
Baixa política e corrupção não se afinam com democracia
* De Roma
No mundo de hoje, caracterizado pela globalização da indiferença, o papa Francisco
reitera que a Igreja é chamada a se comprometer com os últimos e que
não é mais aceitável o bordão iluminista de que não deve meter-se em
política.
Já no ano passado, Bergoglio esclareceu o
que pensa a respeito: que não se trata de voltar à prosaica
participação do clero em campanhas eleitorais e referendárias, que é
assunto do passado, mas, nesta época de valores “líquidos”, afirma hoje o
papa, “a Igreja deve meter-se na grande política”, porque “a política é
uma das formas mais altas do amor, da caridade”, ou seja, do serviço ao
próximo.
Quem estava presente no Seminário
Internacional de Juristas convocado em Roma, na semana passada, pela
Pontifícia Academia das Ciências Sociais, conta da surpresa que as
palavras de Francisco suscitaram entre os participantes e boa parte dos
religiosos.
Ainda uma vez, o papa argentino entusiasma os amigos e desconcerta os adversários com sua fala direta e fora dos esquemas tradicionais.
Inimigo firme do antigo poder temporal, ele esclarece hoje que a Igreja
deve se posicionar politicamente para defender o bem comum e os
interesses gerais dos povos.
No ano do Jubileu, Francisco avisa que a
misericórdia não é só uma aspiração religiosa, mas também uma linha de
ação social em prol dos fracos, dos excluídos, dos pobres. Nessa
trajetória, os politiqueiros inconfidentes que, em lugar do interesse
geral, cultivam a ganância não se iludam: encontrarão no caminho a
pastoral de Francisco, porque na esfera mundana “a Igreja também é
chamada a ser fiel às pessoas, sobretudo em situações onde se tocam as
chagas e o sofrimento dramático em que estão implicados os valores, a
ética, as ciências sociais e a fé”.
Francisco, em suma, voltou
a tratar, nesta ocasião, da relação entre religião e política, desde
sempre objeto de seu preeminente interesse, como confirmara já nos
primeiros meses de pontificado em entrevista ao La Stampa, jornal de Turim.
“O relacionamento deve ser ao mesmo
tempo paralelo e convergente. Paralelo, porque cada um tem seu caminho e
diferentes obrigações. Convergente, somente para ajudar o povo”,
sentenciou em 2014. “A política é nobre”, avisou então o papa, “mas
pode se sujar quando é utilizada para fazer negócios ilícitos”.
Estritamente ligada à degeneração da
política, a condenação da corrupção foi reiterada com firmeza numa
célebre homilia diante de um numeroso e atônito grupo de parlamentares
italianos, poucos meses depois, ainda em 2014. Francisco atacou com
dureza e cara feia aqueles que “de pecadores viraram corruptos”.
Ele então sublinhou que “os pecadores
podem se arrepender e voltar atrás”, conseguindo o perdão graças à
misericórdia, mas para os corruptos será muito mais difícil, porque eles
vivem uma dupla vida de cortesia aparente e de mentirosa hipocrisia,
alimentam um sistema delituoso em detrimento do interesse geral para
cultivar o próprio egoísmo e, sobretudo, reiterar seus pecados.
Sem quebrar definitivamente essa dinâmica
perversa, dificilmente os corruptos poderão conseguir o perdão do
“Senhor misericordioso, que aguarda por todos”. Todos, menos eles.
Desta vez, diante dos
juristas e magistrados reunidos em Roma, Francisco encarou também a
questão da Justiça e da sua autonomia. Começou afirmando:
“Comprometer-se com a própria vocação significa também sentir-se e
proclamar-se livre. Livre de quê? Das pressões dos governos, das
instituições privadas e, em particular, livre das ‘estruturas do pecado’
(...) do crime organizado”.
“Eu sei que vocês sofrem pressões, são
ameaçados (...) e sei que hoje ser juiz ou procurador significa arriscar
a pele; deve haver reconhecimento à coragem daqueles que querem
permanecer livres no exercício da sua função jurídica.”
Porque sem essa liberdade o Poder
Judiciário de uma nação está deturpado e inevitavelmente semeia a
corrupção. “Nós todos conhecemos a caricatura da Justiça, para esses
casos, não é? A Justiça de olhos vendados da qual a venda cai para
cobrir-lhe a boca.”
Para abrir novos caminhos de justiça,
Francisco indica também modalidades de participação: é necessário gerar
um movimento transversal e ondular, “una buena onda” para abraçar
toda a sociedade de cima para baixo e vice-versa, da periferia para o
centro e, ao revés, dos líderes para as comunidades, e dos povos e da
opinião pública para as mais altas esferas dirigentes.
Somente a partir dessas virtudes poderão
ser promovidas “a dignidade humana, a liberdade, a responsabilidade, a
felicidade e, finalmente, a paz”. Por estar fora da tradição católica, é extremamente significativa essa referência à felicidade, aspiração humaníssima e sincera, como o pontificado de Francisco.
“Também neste processo
de liquefação” que a humanidade está vivendo, continua o papa, “toda a
consistência concreta de um povo tende a se tornar mera identidade
nominal de um cidadão, e um povo não é apenas um grupo de cidadãos”. O
juiz, ele adverte, “é o primeiro símbolo de uma sociedade voltada para o
povo”.
A conclusão de seu discurso é nítida:
“Peço aos juízes que realizem sua vocação e missão essencial:
estabelecer a Justiça, sem a qual não há ordem nem desenvolvimento
sustentável e abrangente, tampouco paz social. Sem dúvida, um dos
maiores problemas sociais do mundo de hoje é a corrupção em todos os
níveis, o que fragiliza qualquer governo, debilita a democracia
participativa e enfraquece a atividade da Justiça”.
Pronunciando essas palavras, o pensamento
de Francisco dirigia-se naturalmente à humanidade inteira. Como todo
recado universalista, ele pode ser aplicado a cada realidade particular.
Não por acaso, esta mensagem do pontífice também diz respeito ao
Brasil, onde o conluio entre a baixa política, a dependência de grande
parte da Justiça e os males de uma democracia degenerada colocaram o País num caminho tortuoso que muito se assemelha a um beco sem saída.
*Reportagem publicada originalmente na edição 905 de CartaCapital, com o título "O Brasil cabe nesta lição"
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/revista/905/o-brasil-cabe-nesta-licao