terça-feira, 21 de junho de 2016

O Brasil cabe na nova lição de Francisco

Vincenzo Pinto/AFP
“A humanidade está vivendo um processo de liquefação”

Baixa política e corrupção não se afinam com democracia

* De Roma
No mundo de hoje, caracterizado pela globalização da indiferença, o papa Francisco reitera que a Igreja é chamada a se comprometer com os últimos e que não é mais aceitável o bordão iluminista de que não deve meter-se em política.
Já no ano passado, Bergoglio esclareceu o que pensa a respeito: que não se trata de voltar à prosaica participação do clero em campanhas eleitorais e referendárias, que é assunto do passado, mas, nesta época de valores “líquidos”, afirma hoje o papa, “a Igreja deve meter-se na grande política”, porque “a política é uma das formas mais altas do amor, da caridade”, ou seja, do serviço ao próximo.
Quem estava presente no Seminário Internacional de Juristas convocado em Roma, na semana passada, pela Pontifícia Academia das Ciências Sociais, conta da surpresa que as palavras de Francisco suscitaram entre os participantes e boa parte dos religiosos.
Papa-FranciscoAinda uma vez, o papa argentino entusiasma os amigos e desconcerta os adversários com sua fala direta e fora dos esquemas tradicionais. Inimigo firme do antigo poder temporal, ele esclarece hoje que a Igreja deve se posicionar politicamente para defender o bem comum e os interesses gerais dos povos. 
No ano do Jubileu, Francisco avisa que a misericórdia não é só uma aspiração religiosa, mas também uma linha de ação social em prol dos fracos, dos excluídos, dos pobres. Nessa trajetória, os politiqueiros inconfidentes que, em lugar do interesse geral, cultivam a ganância não se iludam: encontrarão no caminho a pastoral de Francisco, porque na esfera mundana “a Igreja também é chamada a ser fiel às pessoas, sobretudo em situações onde se tocam as chagas e o sofrimento dramático em que estão implicados os valores, a ética, as ciências sociais e a fé”. 
Francisco, em suma, voltou a tratar, nesta ocasião, da relação entre religião e política, desde sempre objeto de seu preeminente interesse, como confirmara já nos primeiros meses de pontificado em entrevista ao La Stampa, jornal de Turim.
“O relacionamento deve ser ao mesmo tempo paralelo e convergente. Paralelo, porque cada um tem seu caminho e diferentes obrigações. Convergente, somente para ajudar o povo”, sentenciou em 2014.  “A política é nobre”, avisou então o papa, “mas pode se sujar quando é utilizada para fazer negócios ilícitos”. 

“A política é nobre, mas pode se sujar quando é utilizada para fazer negócios ilícitos” (Foto: ONU/Amanda Voisard/ Eskinder Debebe/Rick Bajornas/Mark Garten)
Estritamente ligada à degeneração da política, a condenação da corrupção foi reiterada com firmeza numa célebre homilia diante de um numeroso e atônito grupo de parlamentares italianos, poucos meses depois, ainda em 2014. Francisco atacou com dureza e cara feia aqueles que “de pecadores viraram corruptos”.
Ele então sublinhou que “os pecadores podem se arrepender e voltar atrás”, conseguindo o perdão graças à misericórdia, mas para os corruptos será muito mais difícil, porque eles vivem uma dupla vida de cortesia aparente e de mentirosa hipocrisia, alimentam um sistema delituoso em detrimento do interesse geral para cultivar o próprio egoísmo e, sobretudo, reiterar seus pecados.
Sem quebrar definitivamente essa dinâmica perversa, dificilmente os corruptos poderão conseguir o perdão do “Senhor misericordioso, que aguarda por todos”. Todos, menos eles. 
Desta vez, diante dos juristas e magistrados reunidos em Roma, Francisco encarou também a questão da Justiça e da sua autonomia. Começou afirmando: “Comprometer-se com a própria vocação significa também sentir-se e proclamar-se livre. Livre de quê? Das pressões dos governos, das instituições privadas e, em particular, livre das ‘estruturas do pecado’ (...) do crime organizado”. 
“Eu sei que vocês sofrem pressões, são ameaçados (...) e sei que hoje ser juiz ou procurador significa arriscar a pele; deve haver reconhecimento à coragem daqueles que querem permanecer livres no exercício da sua função jurídica.”
Porque sem essa liberdade o Poder Judiciário de uma nação está deturpado e inevitavelmente semeia a corrupção. “Nós todos conhecemos a caricatura da Justiça, para esses casos, não é? A Justiça de olhos vendados da qual a venda cai para cobrir-lhe a boca.”
Para abrir novos caminhos de justiça, Francisco indica também modalidades de participação: é necessário gerar um movimento transversal e ondular, “una buena onda” para abraçar toda a sociedade de cima para baixo e vice-versa, da periferia para o centro e, ao revés, dos líderes para as comunidades, e dos povos e da opinião pública para as mais altas esferas dirigentes.
Somente a partir dessas virtudes poderão ser promovidas “a dignidade humana, a liberdade, a responsabilidade, a felicidade e, finalmente, a paz”. Por estar fora da tradição católica, é extremamente significativa essa referência à felicidade, aspiração humaníssima e sincera, como o pontificado de Francisco. 
“Também neste processo de liquefação” que a humanidade está vivendo, continua o papa, “toda a consistência concreta de um povo tende a se tornar mera identidade nominal de um cidadão, e um povo não é apenas um grupo de cidadãos”. O juiz, ele adverte, “é o primeiro símbolo de uma sociedade voltada para o povo”.
A conclusão de seu discurso é nítida: “Peço aos juízes que realizem sua vocação e missão essencial: estabelecer a Justiça, sem a qual não há ordem nem desenvolvimento sustentável e abrangente, tampouco paz social. Sem dúvida, um dos maiores problemas sociais do mundo de hoje é a corrupção em todos os níveis, o que fragiliza qualquer governo, debilita a democracia participativa e enfraquece a atividade da Justiça”.
Pronunciando essas palavras, o pensamento de Francisco dirigia-se naturalmente à humanidade inteira. Como todo recado universalista, ele pode ser aplicado a cada realidade particular. Não por acaso, esta mensagem do pontífice também diz respeito ao Brasil, onde o conluio entre a baixa política, a dependência de grande parte da Justiça e os males de uma democracia degenerada colocaram o País num caminho tortuoso que muito se assemelha a um beco sem saída. 

*Reportagem publicada originalmente na edição 905 de CartaCapital, com o título "O Brasil cabe nesta lição"

Fonte: http://www.cartacapital.com.br/revista/905/o-brasil-cabe-nesta-licao