RIO - Foi em 3 de abril de 1971 que a revista “Manchete” noticiou:
“Quando seu corpo chegou à sepultura, no cemitério de Caxias, Estado do
Rio, um raio cortou o espaço, e desabou toda a água dos céus, ensopando
as três mil pessoas que erguiam os braços e gritavam: Saravá, Iansã!”. A
narração caprichada descrevia o enterro de João Alves Torres Filho, o
pai de santo Joãozinho da Gomeia, cujo centenário é comemorado este ano.
Apelidado à época pela imprensa de “rei negro”, “o maior babalorixá do
Brasil” e até “Papa do candomblé”, ele morreu em 19 de março daquele ano
vítima de um tumor no cérebro e problemas cardíacos. O relato sobre a
cerimônia fúnebre pode conter excessos, mas não inverdades. É o que
assegura Sílvia Mendonça, presente ao evento.
- Não é fantasia, é
fato - dispara, ao comentar a reportagem. - Era uma tarde muito quente
de verão e, quando desceram o caixão, o tempo fechou. Começou uma chuva
intensa, com trovoadas. Nasci e vivi na rua do cemitério onde ele foi
enterrado, muito próximo ao seu terreiro. Todos comentam que, até hoje,
aquela foi a maior cerimônia que o local recebeu. Eu tinha dez anos e
acompanhei de longe, pela cerca de arame. A população da cidade toda
estava ali, comerciantes afixaram cartazes avisando sobre o funeral.
O
sepultamento grandioso condiz com a trajetória de Joãozinho da Gomeia. O
pai de santo fez história no candomblé ao colocar a religião em páginas
de jornais, revistas e também na agenda de celebridades e autoridades
da época. Getulio Vargas, Juscelino Kubitschek, Dorival Caymmi e Marlene
figuram na lista dos que teriam conhecido o seu terreiro. Mulato, homem
e abertamente homossexual, Joãozinho desafiava a tradição do candomblé,
então dominado por lideranças femininas de ascendência africana
comprovada.
- É impossível falar em candomblé do Brasil sem falar
do Joãozinho. Na mídia, era a principal figura da religião. Não temos
condição de saber o que seria o candomblé hoje se ele não tivesse
existido - conta Andrea Mendes, doutoranda em História Social da África
na Unicamp e autora do livro “Vestidos de Realeza: Fios e nós
centro-africanos no candomblé de Joãozinho da Gomeia”. - Por mais que
ainda persistam uma série de preconceitos, ele foi essencial para
mostrar o candomblé não só como algo exótico, como um culto primitivo,
mas sim como uma religião que tinha uma estrutura própria.
TERREIROS EM SALVADOR
Nascido
em Inhambupe, cidade a cerca de 150 quilômetros de Salvador, Joãozinho
foi iniciado no candomblé ao 16 anos pelo pai de santo Severiano Manoel
de Abreu, conhecido como Jubiabá. A trajetória de líder religioso
começou em um terreiro na capital baiana, herdado de uma mulher a quem
chamava de madrinha. Lá, ganhou seu primeiro apelido, João da Pedra
Preta, por receber um caboclo com o mesmo nome.
A casa teria
ficado pequena para a quantidade de pessoas que buscavam João, e ele se
mudou para um terreiro no bairro de São Caetano, numa localidade chamada
Gomeia, onde recebeu a alcunha pela qual acabou ficando conhecido. Em
1937, começou a ganhar projeção ao participar do II Congresso
Afro-brasileiro, organizado pelo escritor Édison Carneiro.
- Ele
era um pai de santo muito jovem, mulato, sem um ascendência africana
clara numa época em que essa ascendência garantia respeito no meio. Além
disso, era homossexual. Reunia tudo que não era desejado no meio
conservador do candomblé naquela época. - afirma Andrea sobre este
período. - Além de todos esses atributos, era da nação Angola, na época
vista com um candomblé secundário.
Na década seguinte, no entanto,
o babalorixá estabeleceu sua fama. Mudou-se para o Rio em 1946,
provavelmente atraído por questões econômicas e por vínculos que tinha
criado em viagens anteriores, segundo especialistas. Instalou então o
seu terreiro em Duque de Caxias e virou celebridade na Baixada
Fluminense.
- A casa dele era local oficial de vacinação. Minha
mãe levava meus irmãos mais velhos lá. Nos ônibus que passavam por perto
vinha escrito “Via terreiro de Pai João” - lembra Sílvia Mendonça,
jornalista e atriz, idealizadora de homenagens a Joãozinho. - Na época, o
candomblé era caso de polícia. Foi ele quem começou a mudar toda essa
história.
A fama veio acompanhada de controvérsias. Em 1956 o pai
de santo provocou a ira de líderes religiosos ao aparecer em jornais
travestido de vedete em um baile no Teatro João Caetano. Questionado por
um repórter de “O Cruzeiro” se a fantasia não se chocava com os
regulamentos do candomblé, lançou: “De nenhuma maneira, meu amigo.
Primeiro, porque antes de brincar eu pedi licença ao meu guia. Segundo
porque o fato de eu ter me fantasiado de mulher não implica desrespeito
ao meu culto, que é uma Suíça de democracia. Os Orixás sabem que a gente
é feito de carne e osso e toleram, superiormente, as inerências da
nossa condição humana, desde que não abusemos do livre arbítrio”. O
repórter ainda comentou “Você está falando difícil”. E ele: “Você está
pensando que babalorixá tem de ser analfabeto?”. Dez anos mais tarde,
nas páginas da mesma publicação, Joãozinho apareceria em uma
fotorreportagem de capa que continha um conjunto de 26 fotografias
apresentando vestimentas de divindades do candomblé.
- Nos
candomblés considerados modelo, os homens não dançavam nas festas, não
entravam em transe publicamente. Joãozinho entrava em transe, vestia
roupas de orixás em cerimônias e incorporava Iansã, uma divindade
feminina, o que era considerado um tabu. Ele ainda tinha o agravante de
alisar os cabelos. Usar ferro quente na cabeça - considerada a morada do
orixá, o centro energético da pessoa - era impensável. Mas o que estava
embutido nisso tudo era preconceito, para além dos dogmas
afro-religiosos - argumenta Andrea.
As histórias do pai de santo
foram relembradas no início do mês na mostra “Memória e identidade: 100
anos de Joãozinho da Gomeia”. O evento organizado pela Fundação Palmares
em parceria com o Centro de Referência Patrimonial e Histórico (CRPH)
de Duque de Caxias e com o apoio de Sílvia.
- Trouxemos pessoas
de outros estados para falar dele, gente de Salvador, de Belo Horizonte -
conta Neia Daniel, representante Fundação Palmares no Rio, citando
ainda a presença da herdeira espiritual do babalorixá, Sandra dos
Santos. - Joãozinho é colocado por muitos como o rei do candomblé.
Naquela cenário das décadas de 40, 50, 60, dentro de todo o preconceito
que existia, ele assumia sua orientação sexual e, ao mesmo tempo,
conseguiu dar uma visão à religião. Seu papel na época é comparado
somente ao de mãe Menininha do Gantois.
BORI NO GANTOIS
A
famosa ialorixá baiana era uma das religiosas mais próximas de
Joãozinho, cujas irreverências não eram bem aceitas por algumas mães de
santo. Segundo Andrea, existem muitas versões sobre a relação com Mãe
Menininha. Eles estiveram brigados por um tempo, mas em 1966 Joãozinho
foi convidado por ela para acompanhar uma festa de caboclos no Gantois e
lá fez um bori, uma cerimônia para fortalecer a cabeça, explica.
As
celebrações em torno do pai de santo devem se estender ao ano que vem. A
Prefeitura de Duque de Caxias planeja erguer um centro cultural no
local onde existia o terreiro de Joãzinho. Segundo Jesus Chediak,
secretário de Cultura e Turismo, a ideia é que o local funcione como um
espaço de resgate da memória do babalorixá e da cultura afro-brasileira,
com auditório e quiosques de venda de artesanatos e comidas típicas.
Hoje o local que vivia tomado de gente e recebia figurões é um terreno
baldio.