Kelen dá os primeiros passos após ter a perna amputada depois de incêndio na boate Kiss (Foto: Luiza Carneiro/ G1)
Kelen Ferreira testou prótese pela primeira vez após perder o pé direito.
G1 conta histórias de 6 pessoas que transformaram a vida após tragédia.
Com os dois pés no chão, Kelen Giovana Ferreira, de 20 anos, pode
voltar a sorrir e caminhar. Na sexta-feira (26), um dia antes da
tragédia de Santa Maria completar seis meses, ela viajou 500 km, de Alegrete
a Porto Alegre, para vestir sua prótese pela primeira vez. A perna
direita da estudante precisou ser amputada abaixo do joelho após o
incêndio que matou 242 pessoas na boate Kiss.
Arte 6 meses da Kiss (Foto: Arte/ G1)
Na semana em que o incêndio na boate Kiss completa seis meses, o G1 Rio Grande do Sul
conta histórias de seis vidas transformadas pela maior tragédia do
Brasil nos últimos 50 anos. De sábado (27) até quinta-feira (1),
familiares, sobreviventes, amigos falarão sobre superação, dor, luta e
esperança.
Enquanto colocava a nova perna, Kelen sorria. "Sensação é
inexplicável", disse emocionada. Ela ficou 78 dias internada no Hospital
de Clínicas da capital. “A última vez que tinha andado foi de uma maca a
outra, ainda em Santa Maria”, contou ao G1.
Estudante de Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Santa
Maria, na noite da tragédia a jovem estava na casa noturna ao lado de
duas amigas. Elas não conseguiram se salvar. “Elas foram ao banheiro e
eu estava sozinha. Quando me dei conta do que estava acontecendo falei
‘vou buscá-las’. Uma mão de um homem me puxou e disse ‘tu não vai’ e me
levou até a frente. Acho que foi Deus”, relembra. “Puxei o vestido até o
nariz e comecei a rezar. Pensava que não podia morrer ali”.
Na clínica, ela provou a prótese na companhia do pai. Assim como
experimentar um vestido para uma festa, o protesista observou as
adequações necessárias para o material, que são confeccionados ali
mesmo. “Vamos ajustar tamanho, peso, etc. Ela vai utilizar um sistema
que tem pé e tornozelo biônico, que lê os movimentos e antecipa”,
explica o especialista Jairo Blumenthal. Auto-regulável, a prótese tem
uma leitura de mil vezes por segundo e custa cerca de R$ 52 mil. “Ela
dura cinco anos. Depois, tem de fazer a manutenção”, completa
Blumenthal.
Prótese de Kelen custa R$ 52 mil
(Foto: Luiza Carneiro/ G1)
Sozinha, Kelen pode encaixar o objeto na perna. Já que a sua amputação
foi transtibial, ou seja, abaixo do joelho, ela escolheu uma das
técnicas mais avançadas. A única preocupação da jovem eram os sapatos.
“Eu quero poder voltar a usar salto”, disse.
São necessários 13 cliques até que a malha que cobre a cicatriz se una à
perna falsa através de um pino. Depois, é só treinar. “A gente
normalmente não tem noção do peso da perna, mas a da prótese é muito
mais pesada”, falou Kelen sobre as impressões iniciais.
Depois de caminhar ao lado do especialista, segurando-se em barras, a
gaúcha conseguiu bater palmas, atender o telefone e segurar objetos sem
precisar se apoiar. Desde que realizou a cirurgia de amputação, ela se
locomovia com um andador. “Acho que mereço uma cervejinha!”, brincou.
Quem se emocionou ao ver a filha dar os primeiros passos foi o pai José
Mauri Ferreira. Militar aposentado, conta que mal reconheceu Kelen ao
vê-la no hospital após o incêndio. “Ela ficou muito inchada. Eu olhei o
braço e tinha um vermelhinho, achei que fosse tatuagem, mas o médico me
disse que eram queimaduras”, relembrou Mauri.
Última vez que tinha andado foi de uma maca a outra"
Kelen Ferreira, sobrevivente do incêndio na Kiss
Já em Porto Alegre, ele recebeu uma notícia dolorosa cinco dias após o
incêndio. “Os médicos me disseram que o estado dela era gravíssimo, que
talvez não fosse sobreviver”, completou. Ao visitar a filha no CTI duas
vezes por dia, Mauri sentia que os pés dela estavam gelados demais. A
cirurgia de amputação foi realizada no dia cinco de fevereiro.
Segundo os médicos, o pé precisou ser amputado pois já não havia
circulação. “Antes de sair da boate ainda pensei em tirar a sandália.
Tirei a de um pé, mas logo me puxaram para a rua e fiquei com a outra
presa ao tornozelo. Acho que foi isso”, explicou Kelen.
A rede de solidariedade que surgiu após o acidente ajudaram na sua
recuperação. A convivência com pessoas que, agora como ela, também
possuem algum tipo de deficiência já era recorrente. Kelen realizava
trabalho voluntário em um projeto de dança com cadeirantes. “É claro que
eu nunca vou superar. Mas vou poder ajudar muita gente com a minha
história de superação. A justiça tem que ser feita para todos”,
finaliza.
Kelen e o pai Mauri após dar os primeiros passos com a nova prótese (Foto: Luiza Carneiro/ G1)
Entenda
O incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, região central do Rio Grande
do Sul, na madrugada de domingo, dia 27 de janeiro, resultou em 242
mortes. O fogo teve início durante a apresentação da banda Gurizada
Fandangueira, que fez uso de artefatos pirotécnicos no palco.
O inquérito policial indiciou 16 pessoas criminalmente e
responsabilizou outras 12. Já o MP denunciou oito pessoas, sendo quatro
por homicídio, duas por fraude processual e duas por falso testemunho. A
Justiça aceitou a denúncia. Com isso, os envolvidos no caso viram réus e
serão julgados. Dois proprietários da casa noturna e dois integrantes
da banda foram presos nos dias seguintes à tragédia, mas a Justiça
concedeu liberdade provisória aos quatro em 29 de maio.
Veja as conclusões da investigação
- O vocalista segurou um artefato pirotécnico aceso no palco
- As faíscas atingiram a espuma do teto e deram início ao fogo
- O extintor de incêndio do lado do palco não funcionou
- A Kiss apresentava uma série das irregularidades quanto aos alvarás
- Havia superlotação no dia da tragédia, com no mínimo 864 pessoas
- A espuma utilizada para isolamento acústico era inadequada e irregular
- As grades de contenção (guarda-corpos) obstruíram a saída de vítimas
- A casa noturna tinha apenas uma porta de entrada e saída
- Não havia rotas adequadas e sinalizadas de saída em casos de emergência
- As portas tinham menos unidades de passagem do que o necessário
- Não havia exaustão de ar adequada, pois as janelas estavam obstruídas
Fonte: http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2013/07/inexplicavel-diz-ferida-na-kiss-ao-voltar-andar-apos-ter-perna-amputada.html