Confesso: a reação de entidades médicas ao programa Mais Médicos me
impressionou pelo conservadorismo, pelo desprezo às populações
desassistidas, pelos preconceitos, pela ausência completa de espírito
público. A pretensão do governo, absolutamente correta, era e é fazer
chegar a atenção do médico a áreas desprovidas de quaisquer cuidados. E
oferece uma remuneração absolutamente condigna, de fazer inveja a
milhões de trabalhadores brasileiros. De que doenças sofrem as nossas
entidades médicas, algumas notoriamente de direita, algumas dirigidas
por correntes de esquerda? Sim, classifico politicamente porque elas se
revelaram ao longo do debate - especialmente as de direita, empenhadas
em abertamente combater o governo federal e suas políticas de saúde.
A doença infantil e perigosa do corporativismo afeta a todas elas,
inegavelmente. E esse corporativismo é defensor de uma mentalidade
equivocada. Criou-se, ao longo destes últimos anos, uma cultura perversa
na área médica, a de olhar prioritariamente para o mercado, e não
principalmente para as populações necessitadas. Há que se olhar sem
nostalgia para o passado, mas recolher lições. O médico mais antigo, e
há tantos ainda assim, tinha o olhar voltado para o paciente, fosse quem
fosse. Cultivava o espírito de servir. Abraçava a profissão movido pelo
desejo, pela vocação. Não apenas pela lógica do mercado. Qualquer
análise aligeirada constatará hoje a concentração de médicos nas grandes
e médias cidades, e no interior destas há uma recusa insistente em
assistir as periferias, em socorrer os mais pobres.
Outras doenças se revelaram, de faces obscuras, inclusive o racismo e a
xenofobia. Eu me perguntava por que rechaçar a presença de médicos
estrangeiros. Afinal, não havia profissionais brasileiros dispostos a
cobrir áreas desassistidas - o Brasil dos pobres, onde não se encontra
um médico. O protesto, se genuíno, se com alguma consistência, só se
afirmaria na hipótese de médicos brasileiros pretenderem ocupar todas as
regiões carentes. Aí, tudo bem. Mas, como evidente, não havia
disposição para tanto. É obrigação do governo cuidar da saúde do povo, e
por isso se abriram as portas para médicos estrangeiros.
Assistimos a espetáculos lamentáveis: médicos desembarcando e sendo
agredidos, xingados, mais ainda fossem negros, mais ainda fossem cubanos
- e por que essa raiva especial quanto aos médicos de Cuba, cuja
medicina tem reconhecimento mundial? O corporativismo buscou argumentos
inaceitáveis - como a desqualificação dos profissionais estrangeiros, a
pretender tivéssemos uma medicina bem acima de Argentina, de Espanha, de
Cuba, de Portugal. O que se procurava, e ainda se procura, eram médicos
clínicos, capazes de auscultar em amplo sentido o paciente, e não o
especialista, e não quer dizer que outros países não contem com
especialistas.
É emocionante constatar a presença de duas médicas cubanas, com anos de
experiência em saúde da família, chegando entusiasmadas em Araci,
certas de que poderiam contribuir para melhorar a saúde da população de
dois povoados. Não iam ficar na sede da pequena cidade. Em Salvador,
médicos brasileiros não quiseram ir para Nova Constituinte, no subúrbio,
e um português e um angolano desembarcaram lá com alegria e espírito de
servir àquela população jogada ao léu quanto aos cuidados de saúde. O
corporativismo ainda sacou da algibeira o pobre argumento da
anterioridade da estrutura. Depois dela, devia chegar o médico, o que é
um óbvio contrassenso, e agride os próprios médicos. Estes, antes de
tudo, é que são essenciais.
A crítica ao SUS era para inglês ver. Não queriam seguir para as áreas
mais carentes, mas só apontar as deficiências do sistema. Não foram
capazes de protestos diante do crime cometido contra a população
brasileira quando se extinguiu a CPMF, subtraindo bilhões à saúde. Não
há dúvida: a saúde pública está subfinanciada, e é necessário buscar
novos recursos para melhorá-la. Mas nunca sonegando a presença médica
onde o povo mais necessita. Nossas escolas de medicina precisam cuidar
mais da formação humanista. Mais médicos.
* Emiliano José é jornalista e escritor e escreve na segunda-feira, quinzenalmente.
Fonte; http://atarde.uol.com.br/opiniao/materias/1542519-mais-e-mais-medicos