sábado, 18 de dezembro de 2010

Mar no sertão do Candomblé



O som daquele movimento leve, forçado pelo vento, lembrava o barulho do mar; ao redor, ao contrário, terra seca batida, um horizonte de matos e colinas, o calor de mais de 40º. Flutuando calmamente no ar, largas faixas vermelhas, brancas, amarelas e verdes alternavam-se e hipnotizavam a todos. Não cansávamos de admirar a beleza das faixas, compostas por milhares de bandeirinhas de festa junina fixadas com barbante no teto da varanda da casa principal. Estavam completamente justapostas às centenas em cada faixa; um verdadeiro recife de corais em pleno ar.

Estávamos em um terreiro de Candomblé, a poucos minutos do centro de Inhambupe. Mal havíamos descido do ônibus e o sacerdote da casa – popularmente conhecido como Pai de Santo – já nos recepcionava com sua habitual e, mais tarde, absolutamente reconhecida por nós, abertura contagiante. Pai Uelson era católico e converteu-se ao Candomblé aos 16 anos; aos 21, já era Pai de Santo. Em Inhambupe, caso você necessite encontrar Pai Uelson, há uma grande chance de qualquer um na rua lhe indicar o endereço de sua casa, tamanha é sua popularidade.

Participávamos de uma atividade de alunos de psicologia da USP, cujo objetivo é entrevistar personalidades da cidade tidas como referência pela população, com o intuito de se pensar em políticas públicas a partir da visão dos moradores de Inhambupe. Assim como Pai Uelson havia sido indicado por diversas pessoas, ao cabo de sua entrevista seria tarefa sua indicar mais três pessoas para serem entrevistadas.

Sentamos na sala principal do terreiro, de chão de cimento, sem muitos adereços ou móveis. Cadeiras de plástico branco espalhavam-se pela sala; nas paredes, quadros de santos e algumas fotos, além de certificados. Um deles, concedido pela Federação Nacional do Culto Afro-Brasileiro, garantia a um tal José Uelson de Jesus o título de Sacerdote Afro. Pai Uelson sentou-se em sua cadeira revestida por diversas camadas de panos brancos rendados. Sua expressão era sempre calma e seus óculos de metal pareciam contrastar um pouco com a bata e a calça de pano alvíssimo que trajava.

Durante mais de três horas, falamos sobre história, preconceito, saúde e religião, entre outros temas. Pai Uelson contou-nos sobre a origem indígena de Inhambupe – fator que explicaria “a alta sustentabilidade e poder de decisão da cidade desde cedo” – apesar da atual predominância de afro-descendentes, expressou sua insatisfação com a discriminação existente contra negros em Inhambupe, chegando a atribuí-la a um “feudalismo e coronelismo preconceituosos”. Com relação ao sistema de saúde da cidade, Pai Uelson afirmou sua indignação com o recente fechamento de postos de saúde na cidade e afirmou ser este, na sua opinião, um caso passível de intervenção do Ministério Público.

Ao contrário do que usualmente pode-se esperar, quando o assunto moveu-se para o tema religião, a conversa fluiu de maneira absolutamente calma. Pai Uelson confirmou a existência de outros 158 terreiros de Candomblé só em Inhambupe, revelou ter participado de manifestações recentes pelo direito à liberdade religiosa no Brasil e defendeu temas normalmente espinhosos para líderes religiosos, como o uso de preservativos e a união civil homossexual – “não podemos julgar ninguém, isso[a união civil homossexual] não se discute, vem de si e o direito deve assistir”, afirmou. Sobre o aborto, apesar de não existir uma diretriz específica do Candomblé para o tema, Pai Uelson afirmou ser contrário à prática, mesmo em casos previstos na Constituição.

Ao fim da conversa, para nossa surpresa, fomos todos convidados a nos sentarmos à mesa para comer uma deliciosa torta de frango especialmente feita para nós por uma das ajudantes de Pai Uelson. Eram mais de sete horas da noite quando saímos de seu terreiro e as faixas de cores ainda moviam-se agitadas com seu barulho de mar no sertão.

Equipe de Comunicação da Bandeira Científica

Por Tulio Bucchioni

Fonte:http://www.bandeiracientifica.com.br/blog/

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