sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Hillary e Trump: dois lados da mesma moeda?

Historicamente, há mais continuidades do que rupturas entre os governos democratas e republicanos

A eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, na quarta-feira 9, levou novamente o Partido Republicano à Casa Branca, após oito anos do governo democrata de Barack Obama (2008-2016). Boa parte do mundo parece estar em choque com o resultado das urnas.
Na base do “menos pior”, a candidata Hilary Clinton, do Partido Democrata, recebeu mais simpatia da mídia internacional e de muitos eleitores estadunidenses.
A ideia do “menos pior”, porém, parece reduzir a questão à política partidária e às características pessoais de cada candidato, silenciando, assim, uma visão global sobre o acontecimento.
Para nós, só é possível analisar os resultados do pleito presidencial norte-americano de 2016 pelas lentes da História.
No início do século XX, eventos como a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Revolução Russa (1917), a Crise de 1929 e a o período da Grande Depressão promoveram profundas mudanças na ordem mundial.
O comunismo, enquanto discurso materializado, naquele contexto, pela União Soviética, despontou como uma alternativa ao modelo econômico e social do capitalismo.
Nesse contexto, as classes dominantes (e também as dominadas) viram-se obrigadas a reformar o capitalismo, para que o comunismo (ou a ideia sobre ele) fosse deslegitimado. Esse nos parece um ponto importante para o entendimento sobre o candidatos republicano e a democrata.
Os governos ocidentais, então, passaram a responder às necessidades da classe trabalhadora, priorizando as questões sociais em suas políticas de Estado.
O governo democrata de Franklin Delano Roosevelt (1933-1945) foi pioneiro em muitas medidas, como nos programas de subsídio à agricultura e na aprovação da Lei de Seguridade Social, de 1935.
Tais medidas contribuíram para construir uma memória que liga o Partido Democrata norte-americano aos direitos sociais. Não por acaso, muitos identificados politicamente com a esquerda apoiaram a candidatura de Hillary Clinton.
Após 20 anos dos governos democratas de Roosevelt e de seu sucessor, Harry Truman (1945-1953), o Partido Republicano voltou ao poder com a eleição de Dwight D. Eisenhower, em 1953.
Apesar da mudança partidária, as linhas gerais de atuação do governo dos Estados Unidos mostraram continuidades, em especial, com a manutenção dos direitos sociais à fração branca, nacional, masculina e sindicalizada da classe trabalhadora norte-americana.
A existência de mais semelhanças do que diferenças no raio de ação dos governos dos Estados Unidos, independente do partido, explica-se pela necessidade de responder a uma conjuntura mundial: era preciso conter o avanço do socialismo.
Com a desintegração da União Soviética, no início da década de 1990, o discurso anti-comunista passou a perder sentido, tanto nos EUA quanto na Europa.
Não por acaso, foi a partir desse ponto que a retirada dos direitos sociais e o desmonte da classe trabalhadora, iniciados pelo governo de George Bush (1989-1993), intensificaram-se.
Com o fim da “ameaça comunista”, foi preciso produzir outros sentidos para a política internacional norte-americana. Nesse contexto, os Estados Unidos colocaram-se, pela forma, como um poder hegemônico mundial.
O discurso dominante passou a ser, então, o do livre-mercado e da promoção de eleições livres e dos direitos humanos. Este último ganhou força muito mais pela negação do que pela afirmação de algo. Em geral, a ideia de “direitos humanos” que circulava na imprensa internacional e nos documentos produzidos pelo Estado americano carregava um sentido de oposição ao comunismo.
Ao mesmo tempo, o processo discursivo que orientou a produção de sentidos para o comunismo tratou de diferenciá-lo do conceito de “democracia”, como se comunismo/socialismo carregasse um sentido oposto ao de democracia.
Ainda que o sentido de democracia, nesse caso, estivesse restrito, principalmente, aos conceitos de livre mercado e de eleições livres.
A nova ordem mundial, proclamada pelos republicanos ainda na década de 1980, mantinha o antigo discurso anticomunista do período da Guerra Fria.
No entanto, foi transformada pelo governo democrata de Bill Clinton (1993-2001) na busca, por meio da ideia de comunidade internacional, da justiça universal e dos direitos humanos como condição para a paz democrática.
Assim, a justiça universal e os direitos humanos deveriam ser buscados em qualquer lugar onde estivessem ameaçados, independentemente das fronteiras dos Estados.
Assim, o governo Clinton conquistou duas antigas zonas de influência da ex-União Soviética: a Europa Oriental e o Oriente Médio.
O objetivo de garantir a primazia incontestável dos Estados Unidos no mundo não foi alterado quando o Partido Republicano voltou ao poder, em 2001.
Pouco tempo depois da invasão do Afeganistão, na esteira do 11 de setembro, o governo de George W. Bush (2001-2009) proclamou a necessidade de se levar o livre mercado, a democracia e os direitos humanos aos povos oprimidos e, ao mesmo tempo, de se levar adiante a guerra contra o terrorismo.
Novamente, a ideia de direitos humanos foi deslocada e, seus sentidos, transformaram-se. O comunismo deixou de ser o mal a ser combatido e o terrorismo passou a ser o alvo. Com isso, a política externa norte-americana legitimou necessidade de realizar ataques preventivos contra os países de alguma forma ligados ao terrorismo e, portanto, inimigos da democracia e dos direitos humanos.
Nos anos 2000, as guerras contra o Afeganistão e Iraque foram travadas em cima do discurso da criação de uma nova ordem mundial, por meio da disseminação da democracia.
Os regimes do Talibã, no Afeganistão, e de Saddam Hussein, no Iraque, foram rapidamente derrubados. O estabelecimento de regimes democráticos, porém, jamais foi cumprido. Tal situação demonstra que o cinismo funcionou como um operador de conflito para a questão das duas guerras, pois, ainda que se tenha proclamado uma coisa, realizou-se outra.
O capitalismo precisa das terras, das riquezas naturais e da exploração das populações de todas as regiões do planeta para existir e garantir a acumulação. Daí a necessidade de expansão do capitalismo e da invasão dos países periféricos, liderados pelos Estados Unidos.
Além disso, o fim do perigo comunista permitiu que o nível de vida dos trabalhadores fosse reduzido até a subsistência. Assim, essas determinantes do capitalismo e da ordem mundial contemporânea mostram muito mais continuidades do que rupturas entre os governos democratas e republicanos.
É neste contexto que se dará o raio de ação do próximo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. As diferenças que se tentaram produzir para ambos os candidatos são, assim, “apenas” discursivas.

*Amanda Cotrim é Jornalista e Doutoranda em Análise de Discurso pela UNICAMP. Ricardo Soldera é Economista, Bacharel em Relações Internacionais e Mestrando em Histórica Econômica pela UNICAMP

Fonte: http://www.cartacapital.com.br/internacional/hillary-e-trump-dois-lados-da-mesma-moeda

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